segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Gênese do Dia - Poema de Edelvito Almeida do Nascimento

Cronos Mutilando Urano, por Giorgio Vasari e Gherardi Christofano (século XVI). Palácio Velho, Florença


Hoje, dia de feras,
Procusto me arrasta à sua senda,
estrada de aparar arestas.
Hoje, dia de feras,
sou encarcerado pelo céu
(Urano e seus velhos vícios)
e devorado pelo tempo
(Cronos chorando um blues
na solidão da sua guarita).

Hoje é dia de feras.
E eu, vítima de Minos.
E o fio?
Em algum ponto se perdeu entre feras
Em algum ponto se desfez
E como não ser eu agora
a carne de alimentar os deuses
dragões famintos, febres?

Eu e minhas pernas podres,
eu e o meu pouco fôlego,
eu e minhas doenças,
únicas verdadeiras propriedades.

Eu, fera de mim mesmo,
eu, auto-rei, auto-deus,
autófago, autômato, arauto.


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Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Cecília Meireles