domingo, 21 de outubro de 2012

José Inácio Vieira De Melo nos Reinos da Pedra Só - Hildeberto Barbosa Filho

Pedra Só, abrigo e santuário

“A poesia é uma metafísica instantânea”, afirma Gaston Bachelard, num de seus vários escritos sobre a fenomenologia poética. A frase resume bem a força da experiência vivida, quando habitamos a geografia lírica e ultrapassamos, assim, os muros das vivências ordinárias, para tocar, nem que seja por um momento sequer – minutos relâmpagos a iluminarem o foco da percepção –, a medula dos seres e das coisas, com o sentimento da comunhão e com os predicados do êxtase.
Se nessa contingência, ainda estamos no território da poesia – digamos, da poesia pura, natural, cósmica e humana, a transcender os limites da visão e das sensações –, é, precisamente, no poema que toda esta alquimia existencial tende a se materializar no corpo móvel das palavras. O poema, na sua operação transfigurativa, incorpora à qualidade física dos vocábulos, sobretudo dos arranjos expressivos que se cristalizam em imagens, o sabor inapreensível daquela “metafísica instantânea”. A concreção do poema tem, portanto, um compromisso inadiável com a manifestação da beleza e seus intrínsecos requisitos. Segundo São Tomás de Aquino, a proporção, a simetria e a claridade.
Partindo das fontes telúricas, rurais, míticas, bíblicas e populares, José Inácio Vieira de Melo, com Pedra Só (Escrituras, 2012), intenta esse percurso do físico ao metafísico, da memória à imaginação e da imaginação à memória, assim como da terra (que dura para sempre!) ao abrigo simbólico da arquitetura verbal. Quer na primeira parte que dá título ao livro, autêntico macrotexto, em suas partes autônomas e interdependentes, quer em “Aboio livre”, “Toada do tempo”, “Partituras” e “Parábolas”, os procedimentos expressionais não se modificam, na medida em que as raízes metafóricas e sinestésicas copulam permanentemente, no plano corpóreo das experiências memoráveis, para, daí, darem o salto simbólico e culminarem, esteticamente, na plasticidade e na melodia das imagens.



Galopes e paisagens da Pedra Só

A infância, os bichos, a paisagem, os tipos humanos, enfim, toda uma mitografia singular, marcada pela empatia lírica, como que cria um universo poético próprio, emoldurado sob a ótica do sentimento do mundo e da identidade cultural que particularizam e universalizam os reinos reais, mágicos e imaginários que estratificam dentro e em derredor dessa Pedra Só. Pois, como assinala o eu lírico no poema “Parábolas” (p. 97): “É da natureza do poeta / sonhar a essência do vento / e soprar na harpa os outros nomes / da pedra e da água”.
Que função não teria a linguagem poética senão “soprar na harpa os outros nomes da pedra e da água”, como diz o poeta. Enfim, conjugar um outro verbo para sinalizar a viabilidade de novas veredas, outros aceiros, surpreendentes atalhos, rastros e caminhos que beiram o impossível. A esta lógica, que prefiro nomear de translógica, como atributo característico da dicção lírica, o poeta alagoano, radicado na Bahia, parece seguir sempre no travejamento de seus versos.
À página 15, enuncia: “(...) um boi de campina anda comigo (...) Suas manchas, ruminadas na paciência, / reúnem a terra”. Na página 21, destaco este terceto, simples e celebratório: “Santa, santa, santa. / Santas, as algarobeiras, / poleiro das galinhas e das estrelas”. Mais adiante, na página 27, o registro das raízes da criação e o viés metalinguístico, que brota daqui e dali, estrumado, não obstante, nas entranhas da terra: “Na Pedra Só, a fonte deste poema / e as delícias do pirão de farinha”. Ainda, no mesmo poema, versos deste naipe, à página 29: “A arte da pedra é ser o silêncio que cresce. (...) Tantas vezes minha mão certeira / arremessou pedras na verônica do açude / só para assanhar o sonho das estrelas”. E, na página 38, um recorte imagético que os surrealistas assinariam: “E mais uma vez a noite, / com seus cachos de musa bêbada (...) Minhas sandálias são feitas de aurora (...) Minha Íliada é uma Odisseia”.


José Inácio nos varedos da Pedra Só

Poeta moderno, José Inácio Vieira de Melo, não escapa ao imperativo da metalinguagem nem muito menos aos desafios ontológicos da camada intertextual, uma vez que tais estratégias técnicas e temáticas integram o acervo flexível da dicção poética. No entanto, a elas não se submete, esvaziando a semântica do poema ou transmutando o circuito das palavras na redundância do jogo de armar, nas armadilhas grotescas de um quebra-cabeça tão somente lúdico e narcísico.
Investindo no verso, mesmo que às vezes tangenciando o discursivo, o excessivo e o alongado das medidas sintáticas, o autor evita os exibicionismos tipográficos, as pontuações arrevesadas e os factoides literários, procurando comunicar uma experiência sensível, transformada, por sua vez, em emoção estética, isto é, convocar o leitor para compartilhar, através do corpo do poema, dos insólitos sortilégios da poesia. A propósito, no poema “Caligrafias”, último da obra, o eu lírico sugere exatamente isto, em seus dois dísticos finais: “Temos apenas a ilusão das coisas / e o caminho é irreversível. // Retornar – apenas para o Nome, / para o ser que não tem nome”.

O ser que não tem nome carece de ser nomeado. A linguagem poética é a morada do ser, assegura Heidegger interpretando Holderlin. José Inácio Vieira de Melo tem consciência disso e procura fazer, a partir do chamado telúrico da poesia, do conúbio entre imaginação e memória, o poema que seja nomeação, nomeação carregada de sentidos e novidade que permaneça sempre novidade, no dizer de Ezra Pound.

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Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Cecília Meireles