Pedra Só, abrigo e santuário
“A poesia é uma metafísica instantânea”, afirma Gaston Bachelard, num
de seus vários escritos sobre a fenomenologia poética. A frase resume bem a
força da experiência vivida, quando habitamos a geografia lírica e
ultrapassamos, assim, os muros das vivências ordinárias, para tocar, nem que
seja por um momento sequer – minutos relâmpagos a iluminarem o foco da
percepção –, a medula dos seres e das coisas, com o sentimento da comunhão e
com os predicados do êxtase.
Se nessa contingência, ainda estamos no território da poesia –
digamos, da poesia pura, natural, cósmica e humana, a transcender os limites da
visão e das sensações –, é, precisamente, no poema que toda esta alquimia
existencial tende a se materializar no corpo móvel das palavras. O poema, na
sua operação transfigurativa, incorpora à qualidade física dos vocábulos,
sobretudo dos arranjos expressivos que se cristalizam em imagens, o sabor
inapreensível daquela “metafísica instantânea”. A concreção do poema tem,
portanto, um compromisso inadiável com a manifestação da beleza e seus
intrínsecos requisitos. Segundo São Tomás de Aquino, a proporção, a simetria e
a claridade.
Partindo das fontes telúricas, rurais, míticas, bíblicas e populares,
José Inácio Vieira de Melo, com Pedra Só (Escrituras, 2012), intenta esse
percurso do físico ao metafísico, da memória à imaginação e da imaginação à memória,
assim como da terra (que dura para sempre!) ao abrigo simbólico da arquitetura
verbal. Quer na primeira parte que dá título ao livro, autêntico macrotexto, em
suas partes autônomas e interdependentes, quer em “Aboio livre”, “Toada do
tempo”, “Partituras” e “Parábolas”, os procedimentos expressionais não se
modificam, na medida em que as raízes metafóricas e sinestésicas copulam
permanentemente, no plano corpóreo das experiências memoráveis, para, daí,
darem o salto simbólico e culminarem, esteticamente, na plasticidade e na
melodia das imagens.
Galopes e paisagens da Pedra Só
A infância, os bichos, a paisagem, os tipos humanos, enfim, toda uma
mitografia singular, marcada pela empatia lírica, como que cria um universo
poético próprio, emoldurado sob a ótica do sentimento do mundo e da identidade
cultural que particularizam e universalizam os reinos reais, mágicos e
imaginários que estratificam dentro e em derredor dessa Pedra Só. Pois, como
assinala o eu lírico no poema “Parábolas” (p. 97): “É da natureza do poeta /
sonhar a essência do vento / e soprar na harpa os outros nomes / da pedra e da
água”.
Que função não teria a linguagem poética senão “soprar na harpa os
outros nomes da pedra e da água”, como diz o poeta. Enfim, conjugar um outro
verbo para sinalizar a viabilidade de novas veredas, outros aceiros,
surpreendentes atalhos, rastros e caminhos que beiram o impossível. A esta
lógica, que prefiro nomear de translógica, como atributo característico da
dicção lírica, o poeta alagoano, radicado na Bahia, parece seguir sempre no
travejamento de seus versos.
À página 15, enuncia: “(...) um boi de campina anda comigo (...) Suas
manchas, ruminadas na paciência, / reúnem a terra”. Na página 21, destaco este
terceto, simples e celebratório: “Santa, santa, santa. / Santas, as
algarobeiras, / poleiro das galinhas e das estrelas”. Mais adiante, na página
27, o registro das raízes da criação e o viés metalinguístico, que brota daqui
e dali, estrumado, não obstante, nas entranhas da terra: “Na Pedra Só, a fonte
deste poema / e as delícias do pirão de farinha”. Ainda, no mesmo poema, versos
deste naipe, à página 29: “A arte da pedra é ser o silêncio que cresce. (...)
Tantas vezes minha mão certeira / arremessou pedras na verônica do açude / só
para assanhar o sonho das estrelas”. E, na página 38, um recorte imagético que
os surrealistas assinariam: “E mais uma vez a noite, / com seus cachos de musa
bêbada (...) Minhas sandálias são feitas de aurora (...) Minha Íliada é uma
Odisseia”.
José Inácio nos varedos da Pedra Só
Poeta moderno, José Inácio Vieira de Melo, não escapa ao imperativo da
metalinguagem nem muito menos aos desafios ontológicos da camada intertextual,
uma vez que tais estratégias técnicas e temáticas integram o acervo flexível da
dicção poética. No entanto, a elas não se submete, esvaziando a semântica do
poema ou transmutando o circuito das palavras na redundância do jogo de armar,
nas armadilhas grotescas de um quebra-cabeça tão somente lúdico e narcísico.
Investindo no verso, mesmo que às vezes tangenciando o discursivo, o
excessivo e o alongado das medidas sintáticas, o autor evita os exibicionismos
tipográficos, as pontuações arrevesadas e os factoides literários, procurando
comunicar uma experiência sensível, transformada, por sua vez, em emoção
estética, isto é, convocar o leitor para compartilhar, através do corpo do poema,
dos insólitos sortilégios da poesia. A propósito, no poema “Caligrafias”,
último da obra, o eu lírico sugere exatamente isto, em seus dois dísticos
finais: “Temos apenas a ilusão das coisas / e o caminho é irreversível. //
Retornar – apenas para o Nome, / para o ser que não tem nome”.
O ser que não tem nome carece de ser nomeado. A linguagem poética é a
morada do ser, assegura Heidegger interpretando Holderlin. José Inácio Vieira
de Melo tem consciência disso e procura fazer, a partir do chamado telúrico da
poesia, do conúbio entre imaginação e memória, o poema que seja nomeação,
nomeação carregada de sentidos e novidade que permaneça sempre novidade, no
dizer de Ezra Pound.
Nenhum comentário:
Postar um comentário