sábado, 23 de julho de 2016

Caronte - Poema de Edelvito Almeida do Nascimento

Litovchenko, Alexander. A Travessia de Caronte. Óleo Sobre Tela. Museu Russo, São Petersburgo


Na primeira vez que vi Caronte,
minha vida pareceu mais acabada.

Mas passadas quase três eternidades,
mirando sua face na saída,

pareceu-me a única amiga
a que eu já tinha observado.

Na terceira vez que Caronte encontrei,
já trazia o coração despedaçado:
nem o cumprimentei, pobre barqueiro.

Paguei e ordenei que atravessasse.
Eu lamentando ter morrido de infarto
e com paixão mandando no meu peito.

Caronte, agora, encontro todo dia:
é porteiro do prédio onde trabalho.

Com bom dia o saúdo logo cedo;
vem trazer o meu jornal todo amassado.
E, ao sair, digo assim, meio com medo:
boa noite, meu barqueiro desgraçado.


Ouça o poema na voz do ator alagoano Chico de Assis:

Um comentário:

Ricardo Thadeu (Gago) disse...

Fantástico, Vitor.

Abraços!

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Cecília Meireles