quarta-feira, 9 de abril de 2008

O Fogo do Invisível, por Foed Castro Chamma

Foed Castro Chamma

Ladrão do Fogo, práxis do saber, punição: sintaxeos artis mirabilis, são a priore fatores básicos da condição do ser e do fazer que o poeta representa na produção da linguagem poética, percorrendo a diversidade de caminhos que culminam na via surreal da Alegoria.
No âmbito da Forma, o fogo é transformado em discurso; de modo a se observar que o que se cristaliza no ser é originário do Fogo, na visão pré-socrática de Heráclito. Assim a produção do pensar e do fazer encontra na subjetividade negra da luz o Fogo projetado na mente, movido o sujeito pelo Uno, do qual a consciência é o núcleo.
O pensamento como invenção e produção da linguagem é uma viagem da cultura diversificada em escolas que se distanciam arrastando a nostalgia do Uno no espelho. Nos aforismos de Heráclito a genealogia do ser no sentido de negação é projetada em um reduto de discurso que Elizeu Moreira Paranaguá sintetiza em seu livro inédito O FOGO DO INVISÍVEL (Selo Letras da Bahia, Salvador, 2006), a apontar a sombra, dokonta em grego, ou Aparência, a qual intrigava obstinadamente os helenos.
Na intenção intertextual de alcançar o Uno a leitura dos poemas de O Fogo do Invisível percorre-o novo. A interação verbal concentra-se na metáfora. A disponibilidade de Elizeu Moreira Paranaguá está, por outro lado, em dizer-se filho de Orpheu e carregar “a flecha/ para cravar a maçã no abismo (...) “onírico” onde florescem girassóis entre pântanos.” A nudez diante de Deus é um rapto à sombra. A juventude era celebrada na Antigüidade em um deus (JOVE) cultuado entre os gregos. Da juventude fica-nos sempre a brevidade de um vôo de pássaro. O anel estrelado do cisne, segundo Elizeu, está na curva do pescoço da ave e desce aos pés desenhando uma constelação entre o céu e o abismo de trevas do pensamento que o vento move.
A metafísica de toda margem está em fazer-se outra margem como um duplo. A ausência de costume (a-more) deixa-nos um vão que é abismo, “tirania” da paixão, que cura pela Dor. Holderlin em um de seus poemas imortais une Entusiasmo e Dor em um só corpo. Ali se “enxerga a luz cega de Deus”, conclui Elizeu. As rosas são a carne vegetal de uma ave. Toda ave possui no colo a doçura do amor. A entrega ao inusitado é cultuada entre os judeus nos templos da Cabala. Um fogo líquido atravessa o rio heraclitiano e chega “às pedras do mar”. “A morte é sonho” afirma Elizeu Moreira Paranaguá. A tauromaquia é associada à morte como um sonho na visão de Maniqueu. “O homem se perde no sonho/ o touro se perde no homem, registra EMP numa remota alusão à seita maniqueísta vigorante no início do Cristianismo. A “lã do carneiro” possui ressonância bíblica. “Vestido de ouro” do dia é celebração do deus Jove. Todo menino “adora o Sol” como espelho. “As garças (...) bebem água na lagoa, cantam, e atravessam as “correntes do rio jacaré”. “Abraçar as asas da borboleta” é tocar as pétalas de uma flor. Todo homem é de pedra e de rosas. “Folhas varrendo (...) poeira e céu cinzento ao vento úmido da rua bela são vistas do Cabral 62”, lembra Elizeu.
A poesia toca nas coisas e transforma em mito ou metáfora. Nisto se pode dizer que Elizeu Moreira Paranaguá não nega o Oráculo. Condutor de vacas e boi, e pastor de cabras, Elizeu galopa o campo abrindo porteiras da fazenda. O cavalo de Helena bebe água no tanque. Tornar-se inteiro no fogo “que apaga a morte” (...) “é entrar na água do nada”. Entre as cordas do coração o riso do céu acende luas e abraços. Esta é uma alusão ao que “guarda as coisas no coração”, onde ninguém pode “roubá-las”. Os “anjos rebeldes ascendem ao Uno”. “Sustentar o peso do amor (...) nas amplidões” é dissolução dos pecados (...) ante a verdade”.
Todo princípio é sem fim, todo fim é princípio. “Os arcos caminham para dentro (...) da roda do Ser.” Pedra de fogo é a alma no mistério da sombra. Deus “não insiste”. “Meu irmão morreu no rio (...) e não encheu a boca de água.” O destino começa na palavra, filha de Memória, segundo Hesíodo. “Tudo é ausência” e está “numa gota de orvalho onde está o universo.” “Ricardina deixou sua beleza No extremo da pedra.” “Em sua identidade o Eu espera o Outro.” A palavra cresce “desde o alvorecer”, vinda da Memória. Metafísica da Aparência é a sombra no fluir do mundo. Na fonte do ser está a negação. Ali começa a existir o pensamento. “Os cavalos do tempo são de vento”: verso de Tasso da Silveira que um dia ouvi no bairro da Gávea no Rio de Janeiro. Todo pensar é o pensar de uma estrela. Sócrates nada sabia de “si” O que morreu ao provar a cicuta foi o Outro. O mar é uma placa de bronze, recorda o brônzeo mar de Ulisses. “Entre a águia e a serpente”, está o enlace, segundo Zaratustra, do Perfeito. “Os deuses” repousam no vale, ensinava Lao Tse. “Vago na lua (...) entre céus e anjos”: ‘nu é o coração”. Na “fúria das flechas” está “a asa do Anjo.” A luz de um astro sustenta o ser.
O FOGO DO INVISÍVEL é leitura interminável. Na linhagem do make it new, todo poeta se volta para os fragmentos de filósofos que floresceram há 600 anos antes de Cristo.


Texto publicado no prefácio de O Fogo do Invisível (Selo Letras da Bahia, 2006).

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Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Cecília Meireles