Foed Castro Chamma
Ladrão do Fogo, práxis do saber, punição: sintaxeos artis mirabilis,
são a priore fatores básicos da condição do ser e do fazer que o poeta
representa na produção da linguagem poética, percorrendo a diversidade de
caminhos que culminam na via surreal da Alegoria.
No âmbito da Forma, o fogo é transformado em discurso; de modo a se
observar que o que se cristaliza no ser é originário do Fogo, na visão
pré-socrática de Heráclito. Assim a produção do pensar e do fazer encontra na
subjetividade negra da luz o Fogo projetado na mente, movido o sujeito pelo
Uno, do qual a consciência é o núcleo.
O pensamento como invenção e produção da linguagem é uma viagem da
cultura diversificada em escolas que se distanciam arrastando a nostalgia do
Uno no espelho. Nos aforismos de Heráclito a genealogia do ser no sentido de
negação é projetada em um reduto de discurso que Elizeu Moreira Paranaguá
sintetiza em seu livro inédito O FOGO DO INVISÍVEL (Selo Letras da Bahia, Salvador,
2006), a apontar a sombra, dokonta em grego, ou Aparência, a qual intrigava
obstinadamente os helenos.
Na intenção intertextual de alcançar o Uno a leitura dos poemas de O
Fogo do Invisível percorre-o novo. A interação verbal concentra-se na metáfora.
A disponibilidade de Elizeu Moreira Paranaguá está, por outro lado, em dizer-se
filho de Orpheu e carregar “a flecha/ para cravar a maçã no abismo (...)
“onírico” onde florescem girassóis entre pântanos.” A nudez diante de Deus é um
rapto à sombra. A juventude era celebrada na Antigüidade em um deus (JOVE)
cultuado entre os gregos. Da juventude fica-nos sempre a brevidade de um vôo de
pássaro. O anel estrelado do cisne, segundo Elizeu, está na curva do pescoço da
ave e desce aos pés desenhando uma constelação entre o céu e o abismo de trevas
do pensamento que o vento move.
A metafísica de toda margem está em fazer-se outra margem como um
duplo. A ausência de costume (a-more) deixa-nos um vão que é abismo, “tirania”
da paixão, que cura pela Dor. Holderlin em um de seus poemas imortais une
Entusiasmo e Dor em um só corpo. Ali se “enxerga a luz cega de Deus”, conclui
Elizeu. As rosas são a carne vegetal de uma ave. Toda ave possui no colo a
doçura do amor. A entrega ao inusitado é cultuada entre os judeus nos templos
da Cabala. Um fogo líquido atravessa o rio heraclitiano e chega “às pedras do
mar”. “A morte é sonho” afirma Elizeu Moreira Paranaguá. A tauromaquia é
associada à morte como um sonho na visão de Maniqueu. “O homem se perde no
sonho/ o touro se perde no homem, registra EMP numa remota alusão à seita
maniqueísta vigorante no início do Cristianismo. A “lã do carneiro” possui
ressonância bíblica. “Vestido de ouro” do dia é celebração do deus Jove. Todo
menino “adora o Sol” como espelho. “As garças (...) bebem água na lagoa,
cantam, e atravessam as “correntes do rio jacaré”. “Abraçar as asas da
borboleta” é tocar as pétalas de uma flor. Todo homem é de pedra e de rosas.
“Folhas varrendo (...) poeira e céu cinzento ao vento úmido da rua bela são
vistas do Cabral 62”, lembra Elizeu.
A poesia toca nas coisas e transforma em mito ou metáfora. Nisto se
pode dizer que Elizeu Moreira Paranaguá não nega o Oráculo. Condutor de vacas e
boi, e pastor de cabras, Elizeu galopa o campo abrindo porteiras da fazenda. O
cavalo de Helena bebe água no tanque. Tornar-se inteiro no fogo “que apaga a
morte” (...) “é entrar na água do nada”. Entre as cordas do coração o riso do
céu acende luas e abraços. Esta é uma alusão ao que “guarda as coisas no
coração”, onde ninguém pode “roubá-las”. Os “anjos rebeldes ascendem ao Uno”.
“Sustentar o peso do amor (...) nas amplidões” é dissolução dos pecados (...)
ante a verdade”.
Todo princípio é sem fim, todo fim é princípio. “Os arcos caminham
para dentro (...) da roda do Ser.” Pedra de fogo é a alma no mistério da
sombra. Deus “não insiste”. “Meu irmão morreu no rio (...) e não encheu a boca
de água.” O destino começa na palavra, filha de Memória, segundo Hesíodo. “Tudo
é ausência” e está “numa gota de orvalho onde está o universo.” “Ricardina
deixou sua beleza No extremo da pedra.” “Em sua identidade o Eu espera o
Outro.” A palavra cresce “desde o alvorecer”, vinda da Memória. Metafísica da
Aparência é a sombra no fluir do mundo. Na fonte do ser está a negação. Ali
começa a existir o pensamento. “Os cavalos do tempo são de vento”: verso de
Tasso da Silveira que um dia ouvi no bairro da Gávea no Rio de Janeiro. Todo
pensar é o pensar de uma estrela. Sócrates nada sabia de “si” O que morreu ao
provar a cicuta foi o Outro. O mar é uma placa de bronze, recorda o brônzeo mar
de Ulisses. “Entre a águia e a serpente”, está o enlace, segundo Zaratustra, do
Perfeito. “Os deuses” repousam no vale, ensinava Lao Tse. “Vago na lua (...)
entre céus e anjos”: ‘nu é o coração”. Na “fúria das flechas” está “a asa do
Anjo.” A luz de um astro sustenta o ser.
O FOGO DO INVISÍVEL é leitura interminável. Na linhagem do make it
new, todo poeta se volta para os fragmentos de filósofos que floresceram há 600
anos antes de Cristo.
Texto publicado no prefácio de O Fogo do Invisível (Selo Letras da Bahia,
2006).
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