sábado, 5 de julho de 2008

ENTREVISTA: Roberval Pereyr - Entre a racionalidade e a experimentação

Por Edelvito Nascimento


Doutor em Letras, Roberval Pereyr é um dos fundadores da revista Hera, direcionada para a publicação de poesia em Feira de Santana desde 1973. Participou de várias antologias poéticas, foi vencedor de diversos prêmios de literatura e ainda é compositor e arranjador, tendo feito parceria com Marcio Pazin e Carol Pereyr. Nessa entrevista concedida a Edelvito Nascimento, em 11 de julho deste ano, no projeto Uma Prosa Sobre Versos (Maracás-BA), o poeta fala de sua poesia, da sua formação enquanto leitor e da leitura literária que prima pela experimentação em detrimento da interpretação.

EDELVITO NASCIMENTO - Você é professor, poeta, ficcionista, teórico da literatura. Como concilia essas diferentes atividades culturais?

ROBERVAL PEREYR - Eu concilio tudo isso na perspectiva do criador. Quando eu sou professor, eu sou criador; quando sou teórico e, evidentemente, quando escrevo poesia ou ficção, também estou criando. Para mim não é difícil reunir essas atividades, pois tudo parte de uma raiz, que é a criação. A única distinção entre elas é que as linguagens se concretizam de maneiras diferentes.

EN - Quais foram as suas primeiras experiências com a leitura e a literatura?

RP - Eu havia iniciado os meus estudos na roça quando, aos onze anos, fui morar em Feira de Santana, onde estudei por um tempo, e depois fui para Salvador. Na minha casa não havia hábitos de leitura e, por isso, eu não tive uma infância de leitor comum da minha época e até de hoje. Por exemplo, quando criança, eu não cheguei a ler revistas em quadrinhos.
Comecei mesmo a me empenhar com uns quatorze ou quinze anos, lendo alguns livros de filosofia que caíam à mão. Lia um e outro livro, me fascinava, mas não era um leitor voraz. Lia em pequena quantidade, mas cada leitura que eu fazia era bem vivida e me marcava. De maneira que a minha iniciação no mundo da leitura não se deu de um modo comum.

EN - Foram essas leituras que lhe conduziram para a produção de literatura? Os seus estudos básicos desempenharam algum papel nisso?

RP - Desde cedo eu tive essa vocação natural pela língua Portuguesa e, embora minha história como leitor ocorresse mesmo fora da escola, nos dois colégios em que estudei, em Feira, fui estimulado pelos professores nesse sentido. Em alguns trabalhos escolares, cheguei a representar o papel de poetas, como Tomás Antônio Gonzaga, lendo os seus poemas vestido a caráter.
Foi também no colégio municipal que Antonio Brasileiro apareceu e me convidou para fazer a revista Hera. Nessa época eu já era escritor: já havia começado um romance de aventura (que acabou pela metade), já escrevia crônicas e participava de concursos nessa modalidade... Enfim, na época de escola, eu já trazia essa sede pela literatura e pela linguagem, embora o caminho para a poesia não tivesse ainda se definido. Depois de algum tempo, eu comecei a escrever poemas e isso foi se configurando, ganhando forma, muito rapidamente. E até hoje, nas antologias e seleções que faço, há entre os escolhidos poemas daquela primeira fase.

EN - Você dirigiu vários números da revista Hera. Fale um pouco sobre a sua participação nesse grupo e da importância dele para a cultura de Feira de Santana.

RP - Em Feira de Santana, costuma-se dizer que a literatura (e, mais especificamente, a poesia) pode ser dividida em antes e depois da revista Hera. De fato, ela tem sido vista como um divisor de águas.
Surgiu no final de 1972, sob a liderança de Antonio Brasileiro, poeta de Salvador, que foi ensinar em Feira no colégio estadual onde estudávamos eu e alguns colegas que também vieram fazer parte desse grupo. Nós aceitamos o convite de Antônio Brasileiro e fundamos a revista. A partir do ano seguinte, no terceiro número, eu passei a dirigir a publicação, inicialmente com o próprio Brasileiro e, posteriormente, com a ajuda de outros membros.
Hoje, mais de 35 anos depois, a revista acabou se tornando uma referência que não se limita a Feira de Santana. Devido à grande repercussão que teve, a revista conseguiu criar uma história. Além disso, até onde tenho conhecimento, a Hera, entre as revistas brasileiras dedicadas a publicar apenas poesia, é a que mais durou até agora.

EN - Aleilton Fonseca afirma que você tem uma poesia de reflexão existencial. Para o escritor, a literatura preenche o vazio do homem? Ou essas necessidades humanas não fazem parte do objetivo do escritor?

RP - Eu sou movido a escrever. Porém não sei por que escrevo. Mas quando digo que não sei o motivo de escrever, quero dizer que não compreendo qual é a origem. Desde jovem tenho esse impulso pela criação e encontrei na linguagem poética o caminho para isso. Contudo, quando eu escrevo deixo transparecer as preocupações que tenho. Como carrego essas preocupações existenciais, isso acaba sendo uma coisa determinante em minha poesia. Mas, independentemente do direcionamento racional que o artista queira dar à sua poesia, ele cria pela necessidade de criar e as determinações são mais profundas do que as que vêm do plano meramente racional.

EN - A sua produção musical, juntamente com Marcio Pazin e Carol Pereyr, dá mais visibilidade à sua poesia? Ou essas duas criações, a poesia e a música, caminham separadamente, sem que haja entre elas uma influência na atenção que o público lhes dispensa?

RP - O trabalho de Marcio Pazin e Carol, com a minha participação na composição, ajuda sim a dar muito mais visibilidade à minha poesia. Até porque eles já conseguiram ser classificados e premiados em alguns festivais e isso implica em uma divulgação melhor das músicas em rádios, em jornais... Então isso propaga melhor a minha poesia. E as duas coisas andam juntas, porque a poesia, lá nas suas raízes, era cantada e acompanhada com a lira, portanto esse reencontro da poesia com a música é, em certo sentido, uma volta às origens.

EN - Seu último livro de poesia, Amálgama (2004), é uma reunião do que foi publicado desde As Roupas do Nu (1981) até Nas Praias do Avesso (2004). Quando observa todo esse conjunto, você reconhece alguma evolução ou alguma mudança de trajetória em sua poética?

RP - O primeiro livro de maior importância que fiz foi As Roupas do Nu. Antes dele, no início da década de 70, lancei Iniciação ao Estudo do Nu – em parceria com Antônio Brasileiro – e em 76, Cantos de Sagitário. Mas realmente foi em 1981, com As Roupas do Nu, que publiquei o que pode ser considerado o início da minha carreira, por ser um livro maior e mais representativo.
Mas não acho que a minha obra evolua. Ela vai se transformando à medida que vai ganhando mais consistência, incorporando as conquistas formais que obtive durante esse tempo e ganhando colorido especifico de cada momento de minha trajetória.
Por exemplo, eu percebo que hoje, ao contrário do que ocorria no início, o número de poemas mais duros é maior que o de poemas mais líricos. Estes, obviamente, continuam existindo, mas numa proporção bem menor que antes. Além disso, observando o teor filosófico, houve uma aproximação cada vez maior com um pessimismo existencial.
Entretanto, observando certos traços estilísticos (ritmo, vocabulário e a maneira de construir certas formas), noto que algumas características permanecem durante toda a minha trajetória poética.

EN - No prefácio de Amálgama, Valdomiro Santana afirma que ler literariamente não é interpretar, mas apenas experimentar. Como você vê essa afirmação?

RP - Ele advoga esse ponto de vista de que a poesia não se interpreta, poesia se vivencia. E, na verdade, a arte poética é isso mesmo. Como diz Octavio Paz, é um corpo a corpo entre o leitor e o poeta. Depois que se tem essa vivência, depois que o leitor se entrega ao poema e o traz para dentro de si, depois que ele invade o universo do poema e, ao mesmo tempo, permite que esse universo o invada... aí, então, o que ele afirma a respeito do poema é fruto dessa experiência.
É claro que nisso não deixa de haver traços interpretativos. Mas o que percebo nos diálogos que tenho com Valdomiro Santana, discutindo esses assuntos, é que ele entende a poesia como blocos de sensações que podem ser experimentadas pelo leitor. É claro que, quando alguém escreve sobre a poesia de algum autor, não há como eliminar alguns raciocínios interpretativos. Mas a operação de leitura da obra de arte não é meramente racional. É uma atividade em que entra em operação todo o nosso ser e, por isso, é uma vivência muito mais ampla que uma mera interpretação.


Observação: Entrevista publicada originalmente em julho de 2008, primeiro no Cronópios, depois neste mesmo blog.

Para citar:
NASCIMENTO, Edelvito. Entre a racionalidade e a experimentação: entrevista com Roberval Pereyr. Revista Cronópios. São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=3737> Acesso: 31dez2009.

5 comentários:

JIVM disse...

Excelente a entrevista com o poeta Roberval Pereyr. O entrevistador fez boas perguntas e o entrevistado, homem de vasta cultura, tinha o que dizer e trouxe aos leitores a sua vivência poética. Parabéns ao Vitor Nascimento Sá e ao Roberval Pereyr. Parabéns ao Grupo Concriz
JIVM

Anônimo disse...

Parabéns Vitor Nascimento Sá, pela grandiosa entrevista.
Parabéns Roberval Pereyr, pelo poder de tuas palavras.
O Grupo Concriz tem apreciado grandes poetas baianos.
Ivana Karoline - Grupo Concriz

Chico de Assis disse...

Obrigado pelas belas palavras no seu comentário sobre a poesia "Gênese" de José Inácio.
Acabei de atualizar o blog com a poesia Inequação de Sidney Wanderley.
Conto com a sua visita!
http://chicodeassispoesia.blogspot.com

Atenciosamente,

Chico de Assis

Manuh R. disse...

foi uma experiência muito construtiva poder conhecer e recitar poemas de um poeta de extremo conhecimento e valor.

Roger disse...

Parabéns, Pereyr!

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Cecília Meireles