segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Auto da conversão - Edelvito Nascimento


Certa feita, um anjo foi encarregado da árdua tarefa de converter o seu Pai à elevada moral da humanidade. Semi-deus que era, Mahasiah, o anjo, galopou no vento, subiu a mais alta montanha e declarou a subserviência pública dos elefantes.
Era tempo de avalanches colossais e deus brincava de boneca, próximo às fontes recônditas de barro, às sombras dos eucaliptos. Mahasiah fez então rolar monte abaixo as pedras sagradas do peito dos Serafins e pronunciou as doze palavras cabalísticas seguidas do número da sabedoria, trinta e três.
Correndo através dos sulcos nas ladeiras, avançou sobre o pescoço de deus e fê-lo comer uma porção de barro mágico. Estava cansado da fama de sábio filósofo, de anjo ponderado e bom. Estava disposto a converter deus, mesmo que a força. Arrancou de si as cordas com as quais se enforcara por infinitos dezembros e amarrou o Pai a uma árvore. Chamou a si os trinta e três príncipes e os doze anciãos do povo, ordenando-lhes que atirassem as setas ardentes ao peito do Criador.
Debalde: resoluto, deus cuspia o sangue da garganta e sorria com o desdém típico das mariposas negras. Mahasiah perdeu completamente os cabrestos que enrolara sobre a crina e deixou que o Senhor se desvencilhasse, dando-lhe cento e quarenta e quatro dias de vantagem de corrida ao redor do monte de Sísifo.
Após acompanhá-lo, Mahasiah golpeou-o no lado direito do rosto por mil anos. Quando o Pai negou-se a dar a outra face, o anjo virou-o, a pulso, e bofeteou por mais mil anos. E passou mais cinco milênios surrando-lhe o lombo. Depois, cinquenta vezes o ofereceu em sacrifício aos deuses da floresta, até que sobreveio o jubileu.
Mahasiah transformou-se em inseto e, por dez mil anos, roeu o crânio insosso de deus. Transformou-se em cada uma das dez pragas e atingiu-lhe por dez dias o intestino...
Foi descansando em uma rocha no alto do Monte da Coruja que Mahasiah desistiu de seu desígnio. Caminhou até um lado escuro da galáxia e resolveu fazer ali sua morada. Sozinho, auto-declarou-se deus de si mesmo, rei das inexistências, residente das escuridões. Porém, após dois bilhões de anos de solidão, numa manhã de junho, Mahasiah mirou o infinito, estendeu solenemente a mão direita sobre os doze vazios e as trinta e três sombras inertes e disse:
- Que se faça luz.
E Mahasiah viu que tudo era bom...

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Edelvito Nascimento (nascimentoedelvito@gmail.com) é poeta e professor de literatura. Atualmente dirige o Grupo Concriz em parceria com  os poetas Marcelo Nascimento, seu irmão, e  Edmar Vieira, Diretor de Cultura do município de Maracás.




11 comentários:

Ivana Karoline disse...

Parabéns pelo conto. Mostrou mais uma especialidade.
Abraços poeta!

Unknown disse...

Muito Bom o Conto
como sempre você nos mostrando algo novo e fazendo que conheçamos um pouco mais dessa arte tão vasta e encantadora, a Poesia...

Parabéns!!!

JIVM disse...

Gosto do clima desesperado e alucinante dessa sua narrativa original (que fala da(s) origem(ns)). Sinto que você está no caminho certo, ou seja, perdido. Abraços.

JIVM

Caroline Brito disse...

Muito bom, Vitor. Parabéns !

Marcelo Nascimento disse...

Parabéns, gostei muito do conto, é diferente, é estranho fiquei meio perdido nele.acho que foi por isso que gostei tanto...

Lana Damasceno disse...

Parabéns vitor!!Mais uma vez nos presenteando com um bom texto.. e que texto! adoreeiiii
Beijosss

Unknown disse...

Rapaz, que texto pirado. Se a estranheza é um caminho escolhido por você para trilhar nesta nova literatura, então está com êxito.

Unknown disse...

É como ler o apocalipse...
dificil e com muita simbologia
mas quando chega no final vc entende do que se trata
e faz com que vc leia novamente!

e isso que é o gostoso!

onde encontro mais poesias suas?

Pablo Sá disse...

Muito interessante,
parabéns companheiro.
abraços

Caio Rudá de Oliveira disse...

Profano, ou seja, bom.

hermann disse...

muito interessante, além de poeta você também é um grante contista

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Cecília Meireles