quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Edelvito Nascimento entrevista Astrid Cabral


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O VOO PELO INFINITO, A BUSCA DO QUE NÃO É ÓBVIO

Publicada em www.verbo21.com.br (edição de novembro de 2010)

Depois de estudar cinco idiomas e rodar o mundo, ela chegou à conclusão de que é mesmo um bicho da terra e que continua com raízes fincadas na Amazônia de sua infância e adolescência. Astrid Cabral nasceu em Manaus em 25 de setembro de 1936. É poetisa, contista e professora. Viúva do poeta Afonso Felix de Sousa, considera sua escrita essencial à sua própria existência. Nessa entrevista concedida a Verbo21, ela fala sobre sua obra, o telúrico e o temporal como temáticas recorrentes, o futuro da literatura e sua recente visita à Bahia, onde participou de três projetos em Salvador, Maracás e Jequié.

Edelvito Nascimento - Depois de mais de uma dezena de livros publicados e de ter participado de tantas antologias, você chega à conclusão de que vale a pena escrever, dedicar tanto tempo à poesia, mesmo num país de poucos leitores, como o nosso?

Astrid Cabral - Sim, vale a pena. A poesia é uma forma de paixão e é a paixão que valoriza a vida. Para mim a vida seria muito insípida se a poesia não me assaltasse de vez em quando. Ser poeta é uma maneira de ser. Não há como fugir. É ela que me mantém inteira e me ajuda a viver. É a bengala que me ajuda a caminhar pelos caminhos mais pedregosos. É o único cigarro que fumo.

EN - É notável, em alguns poemas, o questionamento existencial, a fugacidade da vida humana, “curto instante de glória”, e o tema da saudade. Noutros, encontramos referências ao cotidiano, ao tempo presente, “a volúpia da hora”. O tempo é algo que lhe incomoda?

AC - Certo, o tempo é um dos temas nucleares de tudo que escrevo, e escrever é um modo de driblar o efêmero da vida. Quando leio um poeta que já morreu, me convenço de que continua vivo através da sua voz. A arte é uma espécie de tábua de salvação, idem da religião. Viver é essencialmente trágico, por isso criamos estratégias de sobrevivência.

EN - Mas esse pensar sobre o tempo, também está de olhos no passado. O poema Aquém do Hoje, por exemplo, volta-se para a origem de tudo e, metaforicamente, à escuridão que precede toda existência, até mesmo a do próprio tempo. Então, onde está o poeta nessa eternidade em que não enxergamos nem princípio nem fim?

AC - Nós, os poetas, gostamos de namorar abismos. O nada é um deles. Idem, a escuridão. Mas os abismos podem ser sobrevoados e é o que os poetas costumam fazer, rondando o mistério e apalpando as trevas, buscando uma revelação por mais modesta que seja, feito a luz de uma vela.
Quando escrevi esse poema tinha entrado na universidade, e tinha apenas 18 anos. Foi um lance poético de intuição e curiosidade.
Quando morava nos EEUU, década de 80, li um grande poeta de língua inglesa, o William Butler Yeats, e me deparei com versos dele que tinham a ver com a minha indagação desse remotíssimo passado. Dizia ele: I look for the face I had before the world was made. A poesia é isso, o mergulho no profundo, o voo pelo infinito, a busca do que não é óbvio. As outras informações, os demais conhecimentos, estão nos jornais do dia, são matéria dos programas de televisão.

EN - Em 2006, você publicou uma antologia pela Editora da Palavra que intitulou de Jaula. Ali há poemas com referências a animais. Por outro lado, a natureza como um todo é muito recorrente em seus textos. Fale um pouco dessa sua ligação com a terra, com a vida, com a floresta no meio da qual você nasceu.

AC - Sou de fato uma telúrica. Abeberei-me na cultura, estudei cinco línguas, li centenas de livros, viajei pelo mundo, mas estou sempre de raízes fincadas na Amazônia da minha infância e adolescência, de olhos abertos para o mundo concreto que me cerca.
Somos bicho da terra, amigo, a despeito de nossos ímpetos de voo e extravio pelo mundo das abstrações e do espírito.
Há um ditado da filosofia medieval, não sei se é de São Tomás de Aquino, que diz: Nihil est in spiritu quod primus non fuerit in sensu. Assim, somos antes de tudo carne e osso, o chão sendo nosso lugar primeiro. Tudo que chega ao nosso pensamento já passou pelos cinco sentidos e esse nosso lado animal tem que ser respeitado e louvado. No livro Jaula, sublinho o parentesco profundo que mantemos com todos os seres animais. No livro Alameda, estou ligada ao seres vegetais. Também me irmano aos entes minerais. A água encharca meus poemas, e canto as pedras em alguns deles.

EN - Nesse tempo de muita informação em pouco tempo, proliferam-se as modalidades de literatura curta (o mini-conto, o micro-conto, os haicais) e o uso de diversos suportes como alternativas ao livro (os sites, blogs, microblogs). Qual o destino da literatura? Isso é algo que lhe preocupa?

AC - O futuro da literatura não me preocupa. Acho que o ser humano, em que pesem as mudanças contínuas, preserva uma identidade de eterna insatisfação. Assim sendo, a arte e a religião são sempre absolutamente indispensáveis para suprir a sede da alma.
A remotíssima história sempre nos apresenta formas do uso superior e não utilitário da palavra, hinos religiosos, oráculos, cânticos de trabalho, de guerra, de embalar crianças. Digamos que as formas e os suportes mudam ao correr dos tempos. Passamos dos tijolos cuneiformes da Babilônia aos e-books cibernéticos, mas o ímpeto criador e o pensamento feito palavra sempre sobreviverão.

EN - Quais são as principais diferenças entre a Astrid poeta e a prosadora?

AC - Suponho que elas não sejam tão antagônicas. Primeiro porque há certa coerência no meu modo de ser, depois porque não acredito em fronteiras rígidas e intransponíveis. Creio que minha prosa é fundamentalmente lírica e que a minha poesia, por ser uma poesia de vigília, onde não fecho os olhos à realidade, mas procuro arregalá-los para enxergar além, instaura um clima mais crítico talvez do que sonhador. Nos contos de Alameda, meus personagens são vegetais, um ponto de partida bem irreal, portanto nada prosaico. Já em alguns de meus poemas chego a ser uma hiper realista feroz. Atitude contraditória? Mas a vida é essencialmente feita de imprevistas surpresas e a literatura acompanha essa complexidade do ser.

EN - Você esteve recentemente na Bahia, participando de três projetos de literatura. Conte-nos sobre essa sua recente experiência.

AC - Considero uma experiência muito rica essas sessões de poesia em Maracás, Jequié e Salvador. O formato do projeto permitiu concentração no trabalho individual de um único poeta por vez. Em geral os eventos de poesia sempre apresentam visão panorâmica e coletiva, sem que o público possa de fato sentir o perfil estético de cada criador. Nesses eventos de muitos participantes, cada um se apresenta de modo muito sumário, sem chance de apresentar a complexidade e variedade de sua obra.
Quanto ao público, constatei que ele cresce na proporção inversa ao tamanho das cidades. Assim o auditório de Maracás estava cheio, o de Jequié com razoável número de ouvintes e o de Salvador com apenas 20 pessoas. Em vista disso, julgo que as cidades pequenas deveriam ser cada vez mais escolhidas para abrigar projetos dessa natureza. A descentralização se mostra uma estratégia muito eficiente para o crescimento cultural do povo.

EN - Mas você também participou de projetos de objetivos semelhantes no Rio (Panorama da Palavra) e no Amazonas (Clube da Madrugada), mas de natureza diversas.

AC - De fato tenho participado de alguns projetos de oralização da poesia. Cada qual com suas particularidades determinadas pela época e pelo local. O Clube da Madrugada já completou 56 anos de existência e floresceu numa Manaus letárgica e provinciana. Nunca teve grande público, era um grupo pequeno de jovens idealistas que se reuniam informalmente, sem alarde, em praças, botecos e casas de amigos.
Durante anos estive longe de qualquer movimento, pois vivia em função dos filhos, nos pioneiros anos de Brasília, ou nas temporadas em que trabalhei no exterior. Só no final dos anos 90 é que participei com assiduidade de vários movimentos, com ênfase no Panorama da Palavra e no Poesia Simplesmente. A partir dessa época é que o espetáculo poético se impôs propriamente, buscando locais apropriados como os teatros e atraindo um público variado, de maior âmbito.
Nas décadas de 60, 70 e 80, a poesia era um fenômeno preferencialmente escrito e silencioso. À medida que o espaço foi minguando nos jornais e revistas, a poesia passou a lançar mão da oralização como recurso de sobrevivência, embarcando na inevitável atualização de aderir à tendência contemporânea do espetáculo.

EN - E o que há de novo em sua gaveta?

AC - Estou com o livro de poemas Palavra na berlinda, a ser publicado em breve, pela IBIS LIBRIS, da poeta e editora Thereza Christina Rocque da Motta.
Disponho também do inédito Sobrescritos, rastros de leitura, reunião de textos críticos esparsos (resenhas, palestras, prefácios etc) que a Universidade do Amazonas se propôs a lançar há uns 3 anos. Além disso, no momento organizo o livro Íntima fuligem, um poemário dividido em duas partes: Clareira e Caverna, assim denominadas pelo clima de otimismo ou pessimismo que caracteriza as composições.
Tenho outros projetos, mas ainda embrionários e alguns contos inéditos que devo examinar para aproveitar ou rasgar.
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Edelvito Nascimento (5/6/82) é baiano de Maracás. Tem trabalhos publicados na Verbo 21, Cronópios, Correio das Artes (PB) e Revista Blecaute (PB). Poeta e professor de literatura, formado em Letras na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), é co-diretor do Grupo CONCRIZ, equipe de jovens recitadores e poetas que tem realizado diversos recitais desde 2005.

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Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Cecília Meireles